Joaquim Manuel de
Macedo
A Rua do Ouvidor contou diversas lojas de
perfumarias, e, por consequência, devia ser a rua mais cheirosa, mais perfumada
entre todas as da cidade do Rio de Janeiro.
E todavia não o era!...
Com efeito não havia nem há rua
mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas odoríferas, de banhas e de
pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em vidrinhos, em frascos e em
pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua do Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
Atualmente de noite observa-se o
mesmo fato.
Naquele tempo, porém, isto é, nos
tempos do Demarais, e ainda
depois, a Rua do Ouvidor, de
fácil e reta comunicação com a praia, era uma das mais frequentadas pelos
condutores dos repugnantes barris, das oito horas da noite até às dez.
A esses barris asquerosos o povo
deu a denominação geralmente adotada de - tigres
- pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me
traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e igualmente
ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal
em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A informação é a seguinte:
Um francês (viajante charlatão) passou pela cidade
do Rio de Janeiro, e demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua
do Ouvidor queixas dos incômodos tigres que frequentes passavam ali de noite.
Sábio e consciencioso observador que era, o viajante tomou nota do ato, e
poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa notícia:
“Na
cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os
trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!”
E é assim que escreve a história!
O caso que observei foi desastroso,
mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco depois das oito horas da
noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata branca...
Entre parêntese.
Em 1839 ainda era de uso ordinário
e comum a casaca; o reinado de
paletó começou depois; muitos
estudantes iam às aulas de casacas, e não havia senador nem deputado que se apresentasse
desacasacado nas respectivas
Câmaras: o paletó tornou-se eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se o parênteses.
O inglês de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca
subia pela Rua do Ouvidor,
quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre para despejá-lo no mar.
O pobre africano ainda a tempo
recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar avançou outro; o condutor do
tigre encostou-se à parede que
lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que
lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te
honrou com um soco britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo
ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para
baixo.
Ah! Que não sei de nojo como o
conte!
O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e
inundou com o seu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a vítima
de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara,
lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando furioso:
—
Pegue ladron! Pegue ladron!...
Mas qual - pega ladron! -: todos se arredavam de
inocente e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre
pela inundação que recebera.
Era geral o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O inglês, perdendo enfim de vista o
africano, completou o caso com um remate pelo menos tão ridículo como o seu desastre.
Voltando rua acima, parou em frente de numeroso grupo de gente que testemunhara
a cena, e ria-se dela.
Ainda hoje o estou vendo; o inglês
parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso para o grupo e disse mas disse
com orgulhosa gravidade britânica:
— Amanhã faz queixa a ministro da
Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e de casaca perdidas.
Ah! Eu creio que então a melhor das
risadas que romperam foi a minha gostosa, longa e repetida risada de estudante
feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve
questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no
Brasil por Mr. Christie, o
único capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que
o patrício perdera.
Não foi este único desastre que os
tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou menos grotescos, e sei de um
outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na Rua do Carmo hoje Sete de
Setembro, que de súbito desfez as mais doces esperanças do casamento inspirado
e desejado por mútuo amor.
O namorado era estudante, meu
colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por uma viúva, viuvinha de
dezoito anos, e linda como os amores.
Uma noite, a bela senhora estava à
janela, e à luz de fronteiro lampião viu o namorado que, aproveitando o ponto
do mais vivo clarão iluminador, lhe mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de
lindas flores, que ia enviar-lhe, quando nesse momento o cego apaixonado
esbarrou com um condutor de tigre, e, embora não encapelado, foi quase tão
infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a jovem
adorada incorreu no erro quase inevitável de desatar a rir, e logo depois de
fugir da janela por causa do mau cheiro de que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do rir
impiedoso da sua esperançosa e querida noiva; amoroso, porém, como estava, dois
dias depois tornou a passar diante das queridas janelas.
No erro; a formosa viúva, ao ver o
estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou o lenço a boca para dissimular
o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O estudante deu então solene cavaco,
e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um tigre matou aquele amor.
Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Perseverança, 1878.
Glossário:
tigre: nome dado pelos moradores aos barris cheios de fezes que escravos carregavam à noite pela rua para jogar no mar - naquela época ainda não havia sistema de esgoto nas ruas
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